sábado, 23 de novembro de 2002


Bom dia. De volta. Ao blog, à cidade, a esta moto-serra filha da puta que está acabando com a maravilhosa vista verde que eu tinha da varanda de minha casa.
Uma semana de trabalho de campo, a quase 500 km de Sampa. Oeste paulista, quem aí pode dizer que realmente conhece a região levante a mão, e não vale mentir. Ambientalmente fudida, economicamente exuberante. Fazendeiros podres de ricos que fazem questão de cortar até a última árvore de suas fazendas, porque querem produtividade, porra.
Surpresa, o trabalho era procurar espécies ameaçadas de extinção numa área de reforma agrária. Antigos sem-terra, hoje assentados. Quando me disseram, me arrepiei, reflexo de quem estudou na USP na época da Libelu, os cabeludos porra-loucas pé no saco que iam mudar o mundo com uma greve atrás da outra. Pensei, merda, lá vem discurso de companheiro, e igualdade e fraternidade, e vamos à luta, filhos da pátria.
Estúpida. Me enganei de verde e amarelo. Nunca mais acredito na propaganda da Globo de que os sem-terra são todos revolucionários sangrentos atrás da cabeça de fazendeiros patriotas. O que encontrei na Fazenda Reunidas, uma propriedade de 17.000 hectares onde estão assentadas mais de 600 famílias? Gente do interior, comum e simples, nada mais do que sitiantes. Pequenos proprietários, que plantam de tudo. Gente que vive tranqüila apesar de ter de vender um balde de mangas a 1 real, porque o atravessador é foda. Muitos velhinhos, mas muitos mesmo, que têm uma velhice tranqüila junto com suas famílias (pela primeira vez, vi gente de idade e não sofri por elas e pela falta de amparo no fim da vida). Crianças felizes, com comida abundante e não só escolas, mas também transporte escolar. Agricultores amáveis, que encheram nosso carro com abacaxis, mangas, jacas e palmitos de pupunha. Donas de casas vigorosas, com planos de “plantá fruteira no fundo do terreno, pros passarinho podê comê”. Homens e mulheres que recebem o perfeito estranho com um sorriso de velhos amigos. Comunistas ateus e revolucionários? Ha ha, nunca vi tanta igreja por hectare: pelo menos três em cada agrovila (são sete). O assentamento do INCRA nada mais é do que uma região de pequenos sítios onde antes havia um latifúndio de algum espertalhão que tomou posse de terras devolutas e nunca fez porra nenhuma de útil para os outros.
Se aqui no estado de São Paulo a reforma agrária é isso, só posso dizer: toca em frente!
(claro, não é perfeito, ambientalmente esses assentados amáveis e gentis são caçadores e desmatadores tão filhos da puta quanto os latifundiários, mas não quero falar sobre isso; ainda estou indignada demais com as cagadas que vi por todo o oeste paulista pra conseguir ser equilibrada ou razoável).
Ah, o resultado do trabalho? O corpo todo picado por micuins (carrapatos), cerca de 115 espécies de aves identificadas, lembranças maravilhosas de cerradões que pouco a pouco estão indo pro saco, e a detecção de uma ave que no estado de São Paulo é considerada Criticamente em perigo: a estranhíssima anhuma (Anhima cornuta) que parece uma galinhona com um chifre no meio da testa (juro!), mas que na verdade é parente dos patos. E as pequenas aventuras que transformam o trabalho de campo na melhor coisa do mundo: tempestades, atoleiros, encontros-surpresa com vacas e cães no meio do nada, a apreensão quando a gente perde o rumo no mato...
As cenas que ficam na memória: o bando de cabeças-secas (Mycteria americana) se alimentando numa poça na beira da estrada e a família de cachorros-do-mato (Cerdocyon thous), um adulto e dois cachorrinhos, atravessando a estrada de terra bem na nossa frente. E não tem dinheiro que pague um pôr-do-sol depois de um dia de trabalho de campo.

Fiquem bem, aproveitem o final de semana.

Martha Argel

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