sábado, 9 de novembro de 2002

Bom dia, friiiiiio! Delícia. Eu aqui, desde as três da manhã. Chocolate quente, Mozart (concertos para oboé, trompete e flauta) e um conto que parece que está dando certo.

Ontem: consciência pesada pelo tanto que tenho comido, saí pra caminhar de novo à tarde, em pleno horário de congestionamento (só pros carros, não pra mim). Ponto extremo de meu percurso, em frente à igreja, e em meio aos carros parados no engarrafamento vem correndo, direção contrária à minha, uma escultura. Sem camisa, short mínimo, cabeça rapada. Não muito alto, mas com músculos que raras vezes vi ao vivo. Um touro malhadíssimo Meu queixo caiu. Continuei andando, o sujeito passou impávido e não resisti, como os homens que conferem a bunda da gostosa que passa, continuei andando mas o pescoço foi virando pra não perdê-lo de vista. Nisso um moleque qualquer me ultrapassa e diz baixinho, pra mim “Macaco assim só em árvore”. Puta que o pariu, o monumento que já se afastava era negro. Fiquei emputecida “Macaco é você, olha o teu corpo e olha o dele”, e continuei andando. O cara entrou em passo comigo “Eu também tiro a camisa, quer?” e já ia mesmo tirando. Sem diminuir a marcha, medi-o de alto a baixo. Nem tão magrinho assim, mas me poupe. “Nem se preocupe”, em tom de absoluto desprezo. “Eu tiro” insistiu ele. “Não vale a pena” e apertei o passo. “Você gosta de negão?”. Fiquei calada, eu gostaria é de mandá-lo à merda, mas engraçado, o tom dele já era de cantada. Parei de repente na frente de uma banca de flores onde sempre paro (nunca tenho dinheiro, mas sempre namoro as rosas) e ele, pego de surpresa, seguiu em frente. Só teve tempo de virar o rosto e dizer um amável “Tchau”, enquanto, percebi de rabo de olho, me olhava dos pés à cabeça. Eita! De noite, papeando com a Giulia, ela me chamou de boba. “Devia ter deixado ele tirar. Aí então dizia: agora ajoelha”. Puta, é mesmo! Da próxima, já sei.

Hoje: seis e meia, o vento frio lá fora e eu escrevendo aqui. Não quis sair cedo pra correr. Num ponto complicado do conto, fui pra varanda pra espairecer. Pela rua vem caminhando um homem. Reconheço-o: um senhor coreano sorridente, que sempre que cruza comigo ri ainda mais e diz “Corre muito, né”. Acenei, ele acenou de volta, sorriu. “Não saiu hoje”. “Ainda não, muito frio”. Aí ele fez uma mímica de corredor com os braços, sorriu ainda mais e disse “Corre muito, né”. O que é a reputação!

Bom, aproveito e coloco aí embaixo um continho que escrevi ontem. Quer dizer, que reescrevi em cima de uma idéia surgida durante uma das e-festas do Tinta Rubra.

Tenham todos um belo sábado de sol!
tita

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A cura para o tédio
Martha Argel

Não gosto de tédio. Quero ação. Diversão. E não tenham dúvidas, não espero cair no colo. Vou atrás.
Hoje, por exemplo. Depois que anoiteceu, e não sou de perder tempo, a janela estava ali, aberta para a noite, e eu com fome, tesão quem sabe, talvez durante o dia um sonho molhado com um bom amante há muito devorado. Sem dúvida, uma boa dose de adrenalina não viria mal.
À caça, portanto!
Sabia onde. Uma avenida movimentada. Piranhas até o 1700, travestis daí em diante, e os moradores escondidos detrás de portas e janelas fechadas, falsa normalidade. Uma sombra perto da esquina, altura do 2000, mais que perfeita para minha tocaia. Nada longa, a tocaia, menos mal. Logo um boyzinho, Golf prateado quase zero, encostou, disposto a negociar com a mulher alta e esguia que não era mulher, mas que homem também não era. Foi a hora que escolhi para aparecer. O ser andrógino se enfureceu, querendo roubar meu ponto, piranhinha vagabunda? E veio pra cima de mim, com uma faca que, bem, fui eu quem usou na barriga dele/dela. Sangue desperdiçado, mas não era ele/ela quem eu queria, era o boyzinho e seu olhar de choque aterrorizado, próximo alvo, desta vez de meus dentes, assim que o puxei para fora do carro, enquanto a criatura nem homem nem mulher agonizava na calçada, contorcendo-se numa poça malcheirosa de seus próprios líquidos e excreções.
Hum. Sangue forte, denso, saudável não fosse pelo aftertaste de colesterol, e... que mais... vejamos... álcool, cheira a whisky, e ah, claro, cocaína circulando pelo corpo, no sangue, agindo nos pontos certos do cérebro, como deve ser, cumprindo seu papel e alterando percepção, prazeres, tédio. Deixando o cara ligado.
Hum.
Foi boa a ação, ah, sim, foi muito boa.
Como eu disse, não gosto de tédio.
Esse boyzinho ainda está comigo. Um pouco menos ligado, amedrontado, fraco pela perda de sangue, é verdade, mas está aqui, no banco do passageiro, enquanto me divirto, música alta e o carro alucinando sob meu controle pelas avenidas paulistana. Velocidade, sangue, talvez algum sexo daqui a pouco, e antes do sol sair, menino bonito, seu tédio acaba para sempre. Te prometo. Hoje me sinto um anjo de piedade.
Ei, você aí, quer que eu acabe com seu tédio também?

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